quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Ôôôô pai, Ôôôô vó

        Poema esquisito                               
                               ( Adélia Prado)


Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo 
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem 
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Cópula

as palavras me querem de novo
sem motivo nem intenção
sorriem e dançam em mim
enfiam suas mãos no meio das minhas coxas
beijam meus lábios
mordiscam meu corpo antes do gozo
as palavras me possuem no corpo
mas quem vai parir é a alma.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

"Pero en las grietas está Dios, que acecha."

para uma versão do i ching
                       Jorge Luis Borges


Nosso futuro é tão irrevogável
Quanto o rígido ontem. Não há nada
Que não seja uma letra calada
Da eterna escritura indecifrável
Cujo livro é o tempo. Quem se demora
Longe de casa já voltou. A vida
É a senda futura e percorrida.
Nada nos diz adeus. Nada vai embora.
Não te rendas. A masmorra é escura,
A firme trama é de incessante ferro,
Porém em algum canto de teu encerro
Pode haver um descuido, a rachadura.
O caminho é fatal como a seta,
Mas Deus está à espreita entre a greta.

domingo, 9 de janeiro de 2011

éden

estão nus rei, rainha, súditos
estou nua em pelos e inteira
pelas ruas no mar dentro do mato
ao som de grilos na nua madrugada
eu que estou jardins e tenho pássaros
sou como se estivesse outro lugar qualquer.

estão nus rei, rainha, súditos
estou nua inteira e em pelos
na nua madrugada
ensaio danças sensuais
rio e faço rios que irrigam risos
bebo champagne ou cachaça e nem de uma nem de outra
faço minhas roupas
nua mesmo que vestida num longo e sobre altos saltos 
sempre nua e até mais nua que quando nua estou
quem me olha e me procura em minhas roupas
no que bebo ou onde vou nunca me acha
não é onde estou
só me vê quem enxerga minha profunda nudez
pelas ruas no mar dentro do mato
nos jardins do reino que me sou.

domingo, 19 de dezembro de 2010

giramor

lolilosa dizia o velho preto
enchendo a boca ao dizer a palavra rosa
lolicheirosa
lolilosa
a palavra cantava sozinha
eu ouvia seu perfume adocicado
cheiro bom e quente
novo signo de amor
luz suave clareando caminhos
lolilosa é o que vou pedir
à estrela
ao mar
às deusas mães ancestrais.


o verso exu

acordei hoje sem asas
outra vez a dor sem cabimento
não cabendo mais em mim
maldisse a vida
odiando por igual os adjetivos misturados na memória
queria implodir estas prisões
vomitá-las num jorro forte e quente.

puta presa sem cigarros
arrastei a solidão atada aos pés por grossa corrente
chorei os adjetivos porque não me servem
adubam culpas e vaidades vãs e tombam mortos
antes de encostar no sem palavras onde sou
mas foi sob o peso destes defuntos
tentada pelo diabo a não ser quem sou
que quis tanto apagar o verso.

não o fiz
meu destino de ser alada não deixou
mesmo cansada
de cara molhada
não voltei pra conspurcar a poesia já solta no mundo.

o verso traste é alguma liberdade
belo no simples existir pra além do repúdio que lhe dediquei
brincadeira de avessos
o verso maldito numa face tem do outro lado
a cara de verso salvador.

corrente rompida
aceito que a vida é assombro
lavo corpo e boca de cheiro e gosto que não quero
e vou dormir abraçada ao verso
aceitando que me encoste me embale
sonharei  nesta noite coisas obscuras
admiráveis
sobre uma vaca de asas num pasto feito de palavras
e mais não conto.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

maria sem vergonha

curada de precipícios
perdi medos e vergonhas
não vigio mais minhas palavras
nem a fonte onde nascem
contas,  me basta o compasso do que ganho e do que gasto
de resto, quero é deixar a vida ser
me deixar ser
feito quando o homem sério e bonito
chegando de viagem longa em país distante
enormidades de trabalho pela frente
escreveu: 
            
              “Acabei de chegar e me deitar.
               Estou bem e com saudades do meu bem”

me deixei ser o bem dele e a falta que ele sentia
as palavras me abraçaram e beijaram
por tão pouco dormi amada
abri a porta do sonho
e acordei grávida
mistério que não entendo
nem este nem o que veio depois
mas deixo ser
a vida agora é gerar e parir.

e sem vergonha nem medo
até à beira de precipícios ando bonita
exibindo minha barriga
balançando o quadril
os peitos empinados
fêmea prenhe e no cio
alternando choro e riso
cheia das vontades todas
atiço os homens pelo caminho
mas beijar outro não beijo
não enquanto tiver na boca
o gosto de homem da minha vida que o homem
sério e bonito me deixou.